Lançamentos “off book” e registro de estoques são mencionados; rede diz que falhas são moderadas e sem efeito O Grupo Mateus, varejista alimentar responsável pela maior oferta pública inicial de ações do ano (IPO, da sigla em inglês), relatou em documento enviado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que auditores identificaram deficiências de grau moderado nos seus controles internos, conforme antecipou na sexta-feira o Valor Pro, serviço de informação em temo real do Valor.
A Grant Thornton, auditoria da varejista, identificou 21 falhas, todas citadas nos formulários de referência de 5 e 9 de outubro, e faz recomendações para a redução desses riscos. Nos documentos, a empresa diz que os pontos apresentados não causam distorções significativas nas informações das demonstrações financeiras anuais, mas admite que precisa tornar seus controles mais eficazes.
Procurada na sexta-feira, a empresa disse que, em respeito a fase atual de período de silêncio, decidiu não fazer adendos aos seus comentários sobre as falhas, já feitos no formulário. Após a publicação da informação pelo Valor Pro, a empresa apresentou fato relevante no sábado em que reafirma que não há ressalva, qualificação ou modificação do relatório emitido pelo auditor sobre as suas demonstrações financeiras.
Ainda diz que não é obrigada a divulgar deficiências moderadas, apesar de tê-lo feito em seu formulário, e a divulgação desses dados ocorreu “tempestivamente”, no curso regular do processo de registro da oferta e antes do processo de formação do preço das ações.
A notícia fez fundos e gestores passarem o fim de semana buscando informações junto à família controladora e assessores da oferta. “São falhas muito “picadas”, de R$ 50 mil, R$ 190 mil, e somadas, ficam perto de R$ 1 milhão. Não é algo material, mas joga um sinal amarelo sobre a discussão dos controles internos”, disse ontem um gestor a par das conversas.
Especialista em controladoria ouvido chama a atenção para falhas como lançamentos “off book” (não registrados contabilmente) e a ausência de evolução dos custos do estoque de 2018 a 2020.
Entre as deficiências citadas ainda estão a inexistência de provisão dos juros a transcorrer dos empréstimos. A auditoria também menciona a “ausência de tratamento fiscal” do imposto de renda (IRPJ) e da contribuição social sobre lucro líquido dos aluguéis no Mateus Supermercados e no Armazém Mateus em 2019 e 2020, dentro da norma contábil IFRS 16.
Sobre empregados do grupo, a auditoria menciona risco de fiscalização da Justiça do Trabalho relativo aos acordos com autônomos e diaristas. Os autônomos tem importância no modelo do Mateus. O braço de atacado tem 1.872 representantes autônomos que atendem 770 cidades e 19.415 pontos. Com o trabalho dos representantes, faturou R$ 2,2 bilhões em 2019, de um total de R$ 9,9 bilhões faturados no ano. Maior varejista brasileira de alimentos, com 30 mil empregados, o grupo provisionava R$ 15 milhões para riscos cíveis, trabalhistas e tributários em junho, mesma soma de 2019.
Para todas as deficiências apontadas, a rede faz comentários no relatório. Sobre os autônomos, informa que está fazendo levantamento para a regularização. Também afirma que vai passar a provisionar juros de empréstimos e tomará medidas em relação à questão fiscal dos alugueis.
A respeito dos lançamentos “off-book”, a Grant Thornton não abre detalhes, mas recomenda que a companhia evite a prática, “efetuando o máximo de lançamentos contábeis possíveis, possibilitando o rastreio e memória de todas as movimentações dos saldos contábeis”. A empresa respondeu que “irá tomar as medidas possíveis para adequar-se”. Para a data de 30 de junho de 2020, diz que os ajustes serão realizados nos sistemas.
Análise
O Valor apurou que essas lançamentos são registros de relações entre as redes do grupo (“intercompany”). Há registros que estão contabilizados individualmente, mas não no consolidado, porém o efeito seria imaterial, diz fonte.
Outro aspecto são as operações entre partes relacionadas com saldos relevantes já vencidos “há longa data”, sem a devida baixa, diz o formulário. A auditoria orienta que se quite os saldos no vencimento, e o grupo diz que projetou quitação para os próximos anos.
Na avaliação de Eduardo Belli, gerente de controladoria e planejamento financeiro da consultoria Hesselbach Company, 17 das 21 falhas chamam mais a atenção. “Por exemplo, a questão dos autônomos e diaristas para operações de varejo é sempre sensível, e eles têm peso importante na empresa. Uma fiscalização hoje poderia ter impacto na provisão e nos resultados”, diz. “Sobre estoques, se eles não têm evolução de custo histórico do estoque desde 2018, então eles não têm ideia de seu custo médio de estoque. Os auditores sugerem que a empresa utilize um módulo no sistema, para visualizar isso, indicando, então que esse módulo não existe” , afirma. O grupo informa que está avaliando implementar ações de controle na área.
A questão reforça a necessidade de avançar no debate dos controles internos, especialmente em negócios com governança recém implementada, e com aberturas de capital recentes. “Os formulários têm dezenas de informações vitais nas análises e que nem sempre recebem a devida atenção do investidor”, diz Belli.
Procurada, a Grant Thornton informa que não comenta casos de clientes. Os pareceres dos auditores nas demonstrações de 2019 e 2020 não mencionam as falhas. Sobre a questão, Octavio Zampirollo, sócio líder de auditoria na Grant Thornton Brasil, disse “não haverá ressalva ou ênfase no parecer se o auditor vê que isso não gerou uma distorção material passível de qualificação”, afirma ele, reforçando que não comentaria o caso específico do grupo.
Zampirollo disse que anualmente, as auditorias encaminham cartas de recomendação sobre riscos e controles às empresas abertas em 45 dias da data de assinatura do parecer das demonstrações anuais — o que no Mateus ocorreu na metade de agosto. Uma fonte ouvida diz que o Mateus recebeu a carta dos auditores em 2 de outubro, sexta-feira — mesmo dia da queda das prateleiras em uma loja do grupo, que matou um funcionário. O formulário de referência subiu nos dias 5 e 9 de outubro. O início do período de reserva das ações da oferta foi 25 de setembro e o término, 7 de outubro.
Oferta de ações com forte demanda entre fundos e gestores (a oferta teve mais de cinco vezes a demanda), o grupo fez a sua estreia em pregão na B3 na terça-feira passada. A ação, porém, saiu a R$ 8,97, no piso da faixa de preço indicativa, e registra queda de 4,7% no acumulado da semana até sexta-feira, após um movimento mais forte de venda de papéis por bancos já a partir da quarta-feira, apurou o Valor.
Ainda no fato relevante publicado no sábado, a companhia diz que continuamente faz estudos e análises relativos aos seus processos e controle, e está comprometida com seu aprimoramento. Foi implantando neste ano um comitê de auditoria, que a auxiliará a supervisionar a implementação das recomendações dos auditores, diz no formulário.
Hesselbach na mídia:
"Auditoria vê deficiências nos controles do Grupo Mateus"
Valor Econômico - 18.10.2020
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